Terror Psicológico

 

 

 


CATATONIA

Perambulando por estas trilhas, noites e noites sem fim, sem destino, sem saber porquê...
A floresta densa, negra, fechada em seus mistérios, não abre-se para mim. Eu sigo andando e pensando, tentando achar sentido.
Quase enlouqueço...
Então procuro um escape... Converso com as corujas e elas nada me revelam dos segredos. Escuto os ventos que volta e meia sopram furiosos, mas eles só falam da continuidade da escuridão.
Nunca amanheceu desde que aqui cheguei... Quanto tempo faz? Ou é apenas uma noite e meu sentido temporal eternizou-se?
Às vezes durmo de exaustão... Como frutas que se oferecem na escuridão, os animais fogem uns dos outros, naquele ciclo do maior que come o menor e parecem não me ver nem sentir... Será que estou aqui?
Aqui onde? Que floresta será esta? Por que não amanhece?
Parece que 'alguém' ouviu meus brados e desesperos... Vejo uma luminosidade, será miragem da floresta?
Pisco os olhos, esgueiro-me quase sem discernir o que vejo... Parece-me que faz tanto tempo que não vejo nada que não seja folha, árvore, animais, ambientado no escuro...
É um roupeiro. Certamente uma miragem...
A parte interna de um guarda-roupas, inserido no meio da floresta eternamente noturna...
Ao chegar mais perto, vejo o lado interno do espelho na porta do roupeiro... Do outro lado, meu quarto. Reconheço as paredes verdes, a janela fechada com o padrão galhos de árvores das cortinas...
Vejo minha cama desfeita e sentado em frente ao espelho, em minha poltrona preferida... Eu mesmo!
Catatônico, olhando o Nada, olhando para mim, sem me ver, sem piscar... Semi-morto.


Anorkinda

Criação literária

Num contexto formado por textos, vivia a criação do Homem. Um castelo criado com sonhos, erigido por letras, que uma a uma levantaram as paredes da ficção. Voavam as inspirações, alimentando o ambiente numa atmosfera leve.

Os amigos brincavam com rimas sempre que o tempo estava bom. Se o ar tornava-se sombrio, sem luminosidade, eles se dedicavam à leitura das paredes. De onde vertiam histórias sem tempo ou identidade, ilustrando a criatividade da humanidade.

À noite, e somente no escuro, quando as palavras não podiam ser vistas por olhos mundanos, beijos e carícias se davam em idílios de amor. Romances imaginados agora vertiam-se, gozando plenos direitos de consumar o que fora antes vislumbrado.

Foi numa noite assim, de delícias, que algo extraordinário aconteceu. Um grito foi ouvido por todos daquela criação fantástica, pensou-se e sussurrou-se de ouvido a ouvido que fora um êxtase dos mais empolgados. Homem ou mulher? Não sabia-se dizer.

Porém, antes da aurora, a atmosfera estava densa e os habitantes do castelo dos sonhos, já saciados de prazeres, sentiram que algo estava errado. Lembraram-se do grito ouvido horas atrás. Uma intuição coletiva estava quase visível neste momento. E um cheiro de morte infectava o ar.

Vinha dos porões mais antigos e supostamente abandonados, toda esta aura cinza que pairava na expectativa de cada um. Murmurou-se à boca pequena que houve um tempo em que letras soturnas decoravam aquele lugar e foram relegadas ao esquecimento dos mais baixos porões do castelo. Trancafiadas, as letras teriam definhado na escuridão.

Mas, hoje neste pré-amanhecer era indiscutível: o lúgubre tom das notas do galo despertador, anunciava que o terror soltara-se. As cozinheiras, espavoridas pelos corredores da ala serviçal, gritavam a falta de uma companheira. A novata mais bonita que aqueles colegas já haviam conhecido. Era ela especialista nos recheios mais quentes dos degustes servidos na madrugada. Foi encontrada morta, num sorriso devastador em rosto angelical.

E toda a criação do Homem perdeu a leveza da imaginação. A fama que corria agora era a de que num recanto escondido de uma biblioteca havia um livro mal-assombrado, dele ouvia-se um grito por noite num exercício macabro de literatura.

Anorkinda

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Eficiência

Sem limpar-me completamente, ainda manchas de sangue pelos braços e mãos, pego de minha caneta
e escrevo... Antes que minha memória apague os detalhes mais emocionantes.

Termino. Estas duas moças foram bastante generosas, falavam e gritavam, bastante originais. Por
isso é bom viajar pelo país inteiro. O ser humano é tão diverso e criativo! Observo-as, mortas,
geladas... Silenciosas agora em sua viagem ao limbo, ao inferno, aos Céus... Será? Distraí-me...

Volto ao trabalho. Enterro-as cuidadosamente, replanto o lugar, nenhum vestígio. Refaço as malas,
já é hora de partir a algum outro lugar, ermo... Simples... Sem leis.

Este meu livro está quase pronto. O editor está satisfeitíssimo, pois lhe informei que entregarei
os manuscritos dentro do prazo. A experiência faz a eficiência....

Se ao menos eu tivesse uma maior imaginação, não teria tanto trabalho com as mortes... Mas, é
a sina de cada um. Pego a estrada... Sem pensar, o blues define minha nova rota, qualquer pequena cidade...

Preciso de um velho, algum ancião solitário, cheio de vontade de conversar com alguém... Conversará
com os anjos... É... Preciso de lamentos e súplicas de um velho a beira da morte.

O livro está quase pronto. Mais um best-seller, certamente. Todos são! Os leitores entusiasmam-se com a
veracidade de minhas histórias... Eficiência...

Depois de alguns dias de viagem, hospedo-me numa pequena pousada. Cidade calma, gente pobre e simples...
Desconhecem minha fama e meus livros. Em poucos dias alugo uma cabana em área rural, os cidadãos orgulham-se em ter
de passagem pela cidade um escritor à procura de paisagens frugais para inspirar-se. Sorrio friamente...

O velho ferreiro, sem família, cheio de imaginação e de vocabulário peculiar, morreu em minhas mãos...
Depois de me fornecer muito material. Ligeiro ao escrever, vou registrando tudo o que o velho
gritou, vociferou, balbuciou por fim...

É necessária a morte lenta... Eficiente.

Volto à cidade grande. Luzes, badalação... Lançamento do novo livro, coquetel, gente bonita. Profissional,
recebo as honras, o dinheiro e a encomenda para um novo romance sórdido e cruel. O que eu sei fazer de melhor.

Mas, nesta noite, o noticiário será outro. Prenderam-me. Descuidei-me na cidade do velho ferreiro. Algumas
semanas de investigações e provaram minha culpa.

Sem mais best-sellers... Anos de confinamento, corredor da morte, cadeira elétrica à frente e a mente elaborando
muitos diálogos, muita imaginação escorrendo junto de meu suor. Hoje eu poderia escrever sem matar...

Viagem ao limbo, ao inferno, aos Céus... Será? Distraí-me...

Anorkinda

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Incontrolável loucura
 
Como um pesadelo ela pôde ser visualizada, perfeitamente clara... A loucura arrebanhava tudo o que se lhe aproximava. Não havia vítimas sobreviventes naquele mar de doidas intempéries. Todas foram arrastadas às profundezas de uma líquida insanidade.
Eram tempos difíceis e nem os mais destemidos piratas ou mesmo os soldados em suas férreas disciplinas, escaparam ao suplício em águas turvas, um espetáculo, diria-se, solene.
 
A rebeldia travestida em tapa-olhos e bandanas negras, nunca trouxera perna-de-pau, mas mesmo aguerrida, sucumbia às forças confusas naquele delírio aquático. Vociferaram os palavrões em bafo de rum, pavor e ousadia... Mal foram ouvidos no turbilhão que se desenrolava.
 
A obediência em fardas coloridas, ataviadas, apenas desesperava-se e facilmente fora tragada pelo mar bravio. Armas de fogo, brancas e armas inteligentes não salvaram nem os bons... Não atiraram uma vez sequer contra a avassaladora insanidade.
 
Como se fora autorizada pela Criação, supostamente ilimitada... A loucura escravizava todo aquele que dela se deleitava. Em tumultuosas águas, nos vimos sucumbir. A lógica, o desenvolvimento ou mesmo uma sequência plausível dos fatos desfazia-se irrefreavelmente. 
Eram tempos difíceis estes em que a insanidade estava com todo o poder nas mãos, nas garras, nos tentáculos fortes e arrasadores.
 
O exército de Netuno, do fundo dos mares ousou enfrentar tal fera. Danaram-se cavalos-marinhos e tritões, perpetuando nos oceanos suas lendas. Tronitoaram as ordens do Deus de todas águas num vazio sem sentidos que lhe pudessem atender.
 
O séquito de Clio, flutuando em nuvens de inspiração, tentou interromper as catástrofes. Reescreveram narrativas épicas, romanescas, narrativas reais, nada... Não puderam conter a sanha inevitável do fim dos mundos conhecidos.
 
Não importa de que lado da historia você fique, a insanidade virá te buscar.
 
Anorkinda

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MEU MEDO DE RIR

Comprovadamente sou geliofóbico. O pânico me acomete em ondas de suor e tremedeira ao primeiro sinal que o sorriso me dá, querendo expandir-se.
Causa-me repúdio tanta apelação ao riso hoje em dia, na mídia, nas ruas, até mesmo em livros. Tortura auto-imposta, esta doença foi desenvolvida por mim desde quando me posso lembrar.
Passeando, certa vez, tenra idade, com a família, quase ri de um tombo, não lembro quem caiu, mas não esqueço do movimento involuntário de minha boca a abrir-se e quase produziu o som da gargalhada.
Consegui conter a tempo, na força de vontade férrea, os olhos cravados no olhar do pai, que prometia castigos de forma veemente sem precisar de palavras.
Realmente não sei quando percebi que era proibido rir naquela casa que era minha, naquela família exemplar, tão numerosa, carinhosa, mas sem senso de humor.
Eu poderia ter seguido a vida seriamente, como meus irmãos, sem risos mas também sem pavores. Mas algo em mim se revolta e anseia pela gargalhada nunca sôlta. Isto me atormenta. Me faz vigiar-me dia e noite. Temo até a inconsciência do sono...e se eu gargalhar durante um sonho? Não durmo direito. Vigio cada imagem onírica perscrutando sua ironia ou zombaria, qualquer detalhe que me instigue a rir.
Não sei e não posso imaginar o que me aconteceria se eu falhasse nesta vigilância. Morrer? Seria bom se eu morresse ao rir...mas acredito que não seria esta a consequência. O que seria, então?
Tremo e não respondo...Suo. Taquicárdico procuro distração.
Moças passam perto de minha janela, estão rindo animadamente de algum detalhe bizarro em suas cotidianas juventudes de estudantes. Tapo os ouvidos. As risadas ecoam em meu cérebro, transformam-se em sons estridentes, zumbidos, agonia.
O que aconteceria?
Fecho a janela, cerro a vidraça. As risadas ecoam agora em tom grave...parece uma voz solitária e masculina que ri, ri gostosamente... Ouço estupefato...sou eu...Tremo. Suo. Aconteceu!

Anorkinda

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Nos umbrais
(Dilacerado sem sorte)
 
Atravessamos vários problemas, mas jamais nos separamos, Antonieta e eu...
Mesmo atravessando diversos umbrais, a presença dela me fortalece e de seu lado,
andar comigo dá um sentido a sua morte/vida.
 
Antonieta está bastante desfigurada, por exemplo, já lhe falta um olho, o que não
me afeta, visto que eu perdi os dois na luta contra os corvos do Umbral Negro.
 De certa forma eu enxergo, talvez através do único olho morto de Antonieta,
mas acredito que neste submundo os sentidos físicos são desnecessários... Bem, qualquer forma
física é desnecessária, não fosse, não haveria tanta deterioração.
 
Eu não estaria semi/vivo até hoje se Antonieta não estivesse aqui... Sempre meus
pensamentos se voltam para ela, a única bênção nestes infernos que tenho percorrido.
Foi uma ideia providencial, ter deixado como último pedido que Antonieta fosse enterrada 
ao meu lado no túmulo... Eu sabia que ela não viveria muito tempo sem mim.
 
Ela veio já na primeira noite. O que foi ótimo, pois eu estava atravessando o Umbral Púrpura.
Antonieta foi muito corajosa, ela notou minha insegurança e principalmente o perigo que eu corria
diante aquele exército de ratos esfomeados. Isto faz muito tempo... Primeiro Umbral!
 Ainda estávamos inteiros àquela época.
 
Caminho ainda sobre pés esfacelados, sem dedos. A fome saciada pelos vermes e insetos que encontro
pelas estradas agourentas que percorro. Não posso parar ou são eles, vermes e insetos que me
devoram. Sempre em frente, atravessando umbrais dos quais eu não gostaria de guardar lembranças,
mas elas vem, involuntária e incessantemente.
 
Como aquele mais terrível Umbral, o sétimo... Aterrorizante como o pior de todos os meus pesadelos!
Tudo vermelho, cheiro de sangue e morcegos voando em rasante, guinchando ensurdecedoramente. 
Antonieta, daquela vez, nada esboçou fazer, paralisada de medo. Foi sendo mordida e sugada por cada um e
por vários deles ao mesmo tempo.
Por minha vez, eu debatia-me e arrancava de cima de mim,um por um, ainda com os dentes cravados em minha carne,
levando assim bons bocados de meu corpo. Mas o desespero me afligia, queria proteger Antonieta.
Joguei-me por cima dela e deixei-me devorar mas se ficássemos ali parados, morreríamos... Que paradoxo!
Não estávamos já mortos?
Peguei-a no colo e corri desenfreadamente, sempre à frente. Ao final deste rubro inferno, estávamos, os dois,
sem grandes porções de nossa carne, mas estávamos juntos e prosseguindo assim, ultrapassaríamos todos
os obstáculos.
 
Sou injusto ao dizer que não há bênçãos neste lugar... Não sentimos dor! Este presente nos conforta enquanto
esperamos morrer de verdade. Acredito que este dia chegará quando não houver mais nenhuma porção de nosso corpo
a ser devorada por seres insaciáveis.
 
Antonieta encosta-se, quer um abraço. Meio sem braços, a estreito e penso no que antes fora seu dorso lustroso,
de um pêlo cor de caramelo. Ela geme baixinho pela primeira vez em todo este tempo... Corajosa, minha menina.
Sigamos, Antonieta, sempre em frente. Este tormento há de acabar, quem sabe você possa me levar ao céu dos cachorros
quando esta sua missão de lealdade se completar...
 
Anorkinda

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O cavalo do tempo

A consciência é algo estranho... Posso estar em qualquer corpo e ela permanece intacta ao menos assim eu penso.
Não sei qual é meu 'eu' mais real, acredito ser minha consciência. Pois a cada passeio pelo tempo, novas e brilhantes sensações me são oferecidas, não há como escolher ou mesmo definir 'onde' está minha vida verdadeira. Acho que todas são.

Quando ele se abaixa, me chamando a seu dorso macio, eu sei que é hora de partir para novas viagens.
Pisco os olhos e ao abri-los novamente, completamente... observo bem o meu redor e identifico onde estou, depois abaixo o olhar para mim mesma e verifico que idade tenho.

Gosto bastante de estar em tamanho pequenino, menina inocente, fora do alcance dos julgamentos adultos. E aproveito para descansar e fingir-me inocente, inconsequente e brinco com flores e bonecas, perfeitamente pura.

Ainda bem que estes tempos são curtos e logo o cavalo me chama ou eu morreria de tédio. E morrer não está em meus planos.
Enquanto estou aqui a encher de terra as panelinhas que a mamãe me presenteou com tanto carinho, penso nele... no cavalo. Não o sinto meu, eu não possuo nada. Apenas sei que ele está na fazenda, nasceu aqui, e que ele me leva a tempos diferentes em corpos diferentes.

 Me chamam para entrar e tomar banho. Eu gosto, assim sinto-me lavar das sujeiras de minha recente viagem a um tempo bem menos tranquilo do que este, como criança na fazenda.

Depois de alguns dias de chuva, a terra está com cheiro de vida... Olho para o campo, o cavalo está agachado, me esperando. Até sorrio, estava já com comichões querendo aventuras.

Abraço-o e fecho os olhos, ligeiramente, ao abrir estou num lugar escuro. O cheiro é familiar... Putrefação. Nem preciso olhar-me, já sei como estou, corpo adulto, esguio e forte. Uma mulher de traços duros, como duros são meus atos.

Saio do terreno abandonado desde que viajei daqui pela última vez e entro na casa. Busco uma pá, os corpos já denunciam-se ao olfato, preciso enterrá-los. Um casal de idosos realmente detestáveis, perturbaram-me a vizinhança com suas manias de bisbilhotar e puxar conversa. Precisei livrar-me deles.

Depois do trabalho feito, volto à casa. Preparo um lanche com enlatados e biscoitos, na televisão, as notícias se repetem, mudam apenas os nomes próprios. Que bela existência temos, tudo sempre igual, tudo sempre horrível.

Percebi que enquanto vivo outra vida noutro corpo, este aqui segue uma rotina automática... Mas sem pensamentos novos, por isso apenas ao voltar enterrei os velhos, o corpo sem a consciência não toma decisões.

Eu queria aventuras e vim parar aqui... Não gosto desta realidade, é densa, me agride e como resposta, revido. Levanto-me para ir ao trabalho, visto o uniforme preto. Fuligem, fuligem, lá vou eu! Logo o inverno vai chegar e todas as casas precisam ter suas chaminés desobstruídas ou um pequeno incêndio alastraria-se rapidamente acabaria com toda a população em minutos.

É trabalho pesado, procuro estar sempre só... Pessoas me irritam. Moro na última pequena casa de uma viela pobre de recursos. Definitivamente estou precisando de aventuras, espero que ao voltar, o cavalo esteja a minha espera.

Três longos dias se passaram até que finalmente o cavalo se agachasse em sinal de nova viagem. Bem em tempo pois policiais já rondam meu terreno, alguém deu falta do insuportável casal de velhinhos...

Agora salto alegremente da garupa do animal, estou num corpo ágil mas não magro demais, alta, bonita e com um histórico apreciável de aventuras. Corro, ligeira à varanda, onde deixei minhas 'meninas' escondidas debaixo de uma tábua solta do soalho.

Visto a jaqueta comprida, onde carrego as armas com cuidado... uma faca precisa e afiada, um revólver carregado e uma soqueira. Nem entro na casa, apanho a chave da motocicleta e saio rua afora.

Logo encontro minha turma, já motorizada e assustando os pedestres com suas maneiras e algazarras beligerantes. Adrenalina.

Assim, passo uns dias divertidos, barbarizando. Volto à casa apenas para trocar as roupas ensanguentadas e quando preciso, recarregar o revólver, mas eu o utilizo pouco... Prefiro ver a morte chegando aos poucos no fio da faca afiada.

Hoje, quando saio pela varanda depois de um banho e de comer um bom bocado de carne frita, pronta para mais uma noite de ação, vejo que o cavalo está a postos para levar-me. Suspiro, contrariada. Guardo minhas 'meninas' na tábua solta do soalho e abraço o animal dos mistérios.

Num piscar de olhos estou num campo muito conhecido por mim... A fazenda onde sou menina e onde tudo começou. Pulo do cavalo e vou para dentro da casa, brincar e ouvir histórias que mamãe conta pra eu dormir.

Durante a noite ouço a voz alta de papai, acordo sobressaltada. Ele parece nervoso...  Aproximo-me da porta do quarto deles e fico escutando:

- Pois sonhei isto mesmo, querida. Foi muito real, só pode ser um aviso.

- Querido, você está muito nervoso, está suando. Tente relaxar.

- Amor, só relaxarei quando matá-lo!

- Mas ela o ama tanto... Não faça isso.

- Você não entende. Ele é maligno e vai trazer tragédias ao futuro dela.

Estou paralisada de pavor. Ele está falando do cavalo, eu sei.  Ele não pode saber do cavalo, o que será que sonhou? Voltei ao quarto...

Não consegui dormir mais... Fiquei deitada, cobri a cabeça, só desejava que amanhecesse e que o cavalo estivesse a postos para sairmos em viagem. Mas voltei hoje mesmo, não era provável.

Quando o dia raiou, dormi um sono tenso, pesado. Acordei mais tarde e corri para o campo... Papai já estava lá, aos gritos:

- Cavalo maldito, filho da perdição! Não serás o destruidor do futuro de minha filha!

Ele apontou sua garrucha pro animal enquanto caminhava rapidamente em sua direção. O cavalo levantou a cabeça de seu lanche fresco e matinal ao perceber que a algazarra vinha em direção a ele.
E correu, o animal, velozmente em direção a papai... Pulando em cima dele, ao mesmo tempo em que papai atirava, o tiro acertou o coração do cavalo.

Caíram os dois, mortos.

Mamãe me viu e veio correndo me pagar no colo. Não queria que eu visse a cena... Ela imagina que eu amava os dois, homem e cavalo.
Eu não posso sequer chorar, seja por raiva ou frustração. O desespero me deixa atônita:
"Estou condenada."

FIM

Anorkinda

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O DIA E O ASSASSINATO


Amanheci em sossego, um doce sossego. A brisa trazia a meiguice matinal do vento. Dali a pouco o calor seria escaldante, mas agora a brisa era doce...Sossego...
Conforme a manhã transcorria e o calor gradativamente aumentava, eu sentia o sangue esquentar. Isto provoca uma reação nervosa por todo meu corpo...Tremor...
Na coroação do meio-dia, já não há auto-controle, o fluxo atingiu neurônios.
Cabelos ruivos, brilham ao sol, parece uma deidade. Ela ri, ela ama o sol, o calor, o suor que molha a raiz dos cabelos vermelhos em sua nuca...branca, macia...Ela confia.
Minhas mãos suadas, tremem, o sangue ferve. É meio-dia. O sol queima-me o dorso, os nervos descontrolados. Minhas mãos... A nuca alva, o cabelo vermelho.
A alcanço... Minhas mãos fortes não obedecem, apenas a apertam. O riso some, o brilho no olho some, a alegria pelo sol some...O olho fecha. Ela não ri mais, nunca mais.
Solto-a. Sigo meu caminho como antes seguia, absorto, alheio...Menos tenso. Sei que vai esvair-se o calor, assim como a cor daquela moça... Vai passar...
Caminho até o entardecer, paro em frente ao mar. A temperatura já está normal, olho o sol...Vermelho...Se põe no mar. Mergulho diário dele, refresca-se. Alivio meus tremores, ele se foi...
Está escuro...Sossego...a brisa traz agora a doçura estrelada da noite. Não precisarei mais acompanhar a caminhada quente do astro-rei...Sirenes...Prisão...Sossego.

Anorkinda

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Pacote escuro
 
A manhã estava fria e ainda não estávamos acostumados àquele jogo. Nunca acostumaríamos.
Logo as brumas dissolveram-se e pudemos constatar onde estávamos desta vez...
 
Num vestíbulo com amplas janelas de vidro, visualizamos montanhas de neve e gelo. Penduradas
em cabideiros, roupas adequadas ao frio e esquis.
- Um pouco de aventura, querida! - Marcio sorriu friamente, num misto de sarcasmo e resignação.
- É incrível como podem nos dar tudo o que não desejamos ardentemente! - Foi só o que consegui pensar
antes de abrir a porta e uma rajada de vento enregelante me dar boas-vindas.
 
De volta ao hotel, a lareira, o fundue e o chocolate quente foram uma saborosa acolhida, mas não nos esquentou as ânimos.
- Devemos estar nos Alpes Suíços.
Deixei que esta observação, já tão desnecessária a esta altura de nossas férias, ficasse no vácuo.
 
Dormimos bem e antes que amanhecesse a sirene soou e num piscar de olhos fomos sugados, outra vez para algum 
ponto do planeta.
 
Agora a manhã estava luminosa e logo percebemos a enormidade das Muralhas da China diante de nossos olhos.
Caminhamos feito condenados seguindo um guia turístico empolgadíssimo com a história chinesa.
Volta e meia trocávamos, Marcio e eu, olhares de enfado. Mas tínhamos uma perspectiva revigorante: era o último dia
da viagem.
 
Em meio ao jantar chinês, repleto de iguarias das quais eu pretendo não recordar jamais, nos satisfizemos em revisar
tudo o que não queríamos, mas vimos e visitamos: As modernidades de Dubai, O memorial do World Trade Center, Um safári na África,
passeios bucólicos em gôndolas venezianas e um incrível tour pelos restaurantes tailandeses.
Sete dias de amargar!
 
Anorkinda

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Terrível inspiração

Eu sempre podia vê-lo a caminhar tranquilo pelos jardins verdes e gelados no inverno, floridos e agradáveis no verão... Eu sempre podia estimulá-lo a escrever numa 'santa inspiração'... Ele era minha companhia mesmo sem saber, era minha regalia e divertimento, como outros já o foram...

Céu claro que ora me protege
de quando em quando
ruge e treme, me apavora...
Eternidade, senhora herege
que rege todo pranto
de teus filhos e os ignora...


Eu ditava e ele escrevia, o poeta desestimulado em seus ideais, o humano frágil submisso aos poderes locais... Eu ditava e ele num arroubo de emoção, versava cheio de paixão e recitava nos saraus...Ele minguava a cada dia, quanto mais escrevia e eu me divertia...

Oh... Destino que me impele
ao soluço sem amor,
goza e ri numa manobra
de crueldade e repele
a bênção do Criador,
sou nau vazia que soçobra...


Eu sempre assim fazia, a cada vez que ele nascia, a Terra é canteiro ideal para maldades... Eu sequer precisava procurá-lo, estávamos interligados por um elo eterno, uma viscosa energia de desmazelo... Ele era o melhor exemplo de 'casa vazia' onde qualquer ser pode habitar...

Triste sina a do poeta
que canta e lamenta
enche de graça os salões...
Da corte, o bobo esteta,
a si mesmo não contenta
e sangra internas emoções...

Eu comprazia nessa eterna e sádica inspiração, a ela fui condenado quando entrei nesta espiral de flagelação humana... Eu aprendi a me divertir por aqui, colocando toda a minha possível frustração e raiva na mente do poeta, alvo fácil...Ele entoava e compartilhava com os ouvintes o terrível destino...

E do meu peito bravo
um brado foi ouvido,
alcançou os céus,
enegreceu as nuvens,
atiçou raios num zumbido
fez de cada ouvinte, um escravo...


Caíram todos mortos... uma plateia seleta, nobreza. Por todas as eras ninguém sabia explicar repentinos golpes do tempo que dizimavam assim, amantes da arte em plena degustação de poesia... vez em quando.

Anorkinda

Visão distorcida

Em dia nublado, quente, abafado, prometendo temporal, raio e trovão, saio à rua com meu tridente apontando o céu... Quero sempre ver se Ele tem coragem de enfrentar-me em dia quente, abafado, prometendo temporal.
É quando meu sangue ferve e vermelho como rio de fúria, nada me detém.
- Vem, Seu velho barbudo e voluntarioso. Tente lançar à Terra os seus brinquedos, enxurrando tudo com força, sem dó nem piedade. Vem!

Em dia nublado, quente, abafado, profusamente eu vocifero e grito com o mundo e o Criador dele... Parece-me que assim eu adio em algumas horas a queda dos manaciais que pairam assustadoramente sobre a população em dia quente abafado, prometendo temporal.
É quando eu quero salvar o mundo inteiro e nada me detém.
- Vem, minha gente. Vamos resistir às tentativas de nossa dizimação. Vamos mostrar a Ele nossa força e determinação. Venham!


Lá de cima, de seu trono, onipotente, Ele prepara chuva forte, raio e trovão... Quer purificar e energizar a Terra, seu jardim de Criação, que um dia Ele idealizou, lá de cima, de seu trono onipotente.
- Não é possível que, de novo, aquele insano, brade seu pavor. Tenta me desafiar, blasfemando seu horror, sempre a mesma lenga-lenga!

Lá de cima, de seu trono, onipresente, Ele envia a sublimação que nada tem de assustador... Parece um show de luzes, sons e a cortina líquida e transparente cai sobre a terra, fechando mais um ciclo, idealizado lá de cima, de seu trono, onipresente.
- Não é possível que aquele maluco não se curve ante a beleza desta minha obra-prima. Vou tocá-lo, gentilmente com meu gran-finale!

Abriu-se o céu, só um tantinho e com sua paleta de cores, Ele desenhou o arco-íris...
Vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta, a sinalizar Sua boa-vontade.
- Vamos ver ser meu filho perturbado entendeu o meu recado...


Abriu-me o peito, quando um raio trouxe-me a lembrança da infância e o trovão lançou o grito ao infinito... Aquele grito de terror que dei ao ver o céu desabar com tanta força e, por fim, devastar com meu mundo esculpido na areia...


Não havia recompensa alguma naquele trilho arco-íris. Não era possível escalá-lo e escapar desta sina humana, à mercê dos caprichos D'Ele...Finalmente me convenci que jamais eu daria fim a esta submissão degradante....


Não havia se passado nem um minuto desde que a chuva cessara e o arco-íris sorria ao mundo suas cores de bonança... Ele recebeu a alma inquieta de seu filho atormentado pelo medo, havia-se suicidado atirando-se em cima de seu próprio tridente enfiado na areia...

Anorkinda