Esotéricos

 

 

 

A FESTA PERENE

 


O velho portão enferrujado e sem cor rangeu bonito quando lhe empurrei... Eu gosto do rangido, agudo, familiar. Adentrei no pátio, o gramado que havia ali era hoje território do capim, selvagem, forte e vigoroso... O rei dos jardins em abandono.
Na casa havia luz em todos os cômodos. E na semi-claridade da varanda, banhada apenas pelo luar, Vovó me fitava, séria como sempre. Eu sempre tinha a impressão de que ela queria que eu lhe trouxesse alguma coisa e frustava-se ao me ver de mãos vazias. Seu olhar era absorto.
Inclinei-me e beijei-lhe a testa com um afago nos macios cabelos brancos... O algodão dos tempos.
A festa estava pronta, sempre está quando eu chego... As meninas correram ao me ver, me puxaram pelas mãos, alisaram meu vestido, pareciam estourar de tanto sorrir e falar ao mesmo tempo. Carmem e Gisela eram faceiras e mimosas, me mostravam suas fitas novas para o cabelo que eu já conhecia tão bem...
Na mesa, um banquete de doces, fartos e requintados, bonitos e gostosos. Vários amigos ao redor dela, cumprimentaram-me felizes por poderem, enfim deliciar-se a comer. Não sei porque me esperavam, pois eu nunca comia, há tempos parei de comer guloseimas. Eu os observava com ternura, eram todos tão felizes...
À cozinha estava Filó no comando do forno e fogão... Fui até lá lhe dar um beijo e acenar para seus assistentes atarefados, num vai-e-vem de tachos e tições incandescentes.- Suba lá, minha filha. Ele gosta de ganhar um abraço teu. Disse Filó piscando-me com seu adorável olho azul... A janela de todo amor.
No segundo andar, no quarto em frente à escada, Balbino ouvia a festa e esperava por visitas. Vez em quando alguém subia para lhe contar alguma piada ou fofoca. Ele respondeu ao meu abraço e seus olhos perguntavam por novidades. As meninas, sempre juntas, entraram correndo e gargalhando, movimentavam até o ar, aquelas serelepes...

Descemos juntas para ouvir Violeta, a cantora bela e melancólica... Ela amava cantar acompanhada ao piano por um amigo austríaco, adorador dos bolinhos da Filó. As meninas dançavam alegremente, mesmo a música sendo lenta e triste. As pessoas saciadas de doces, conversavam ao redor da mesa, recontando histórias conhecidas.Violeta agora à janela, olhava a lua... A musa dos suspiros.
Todos estavam entretidos, dirigi-me à porta principal, atravessei novamente o jardim e cruzei o portão. Já sentindo saudades destes amigos, mas eu voltaria... Logo.

Não tenho lembrança alguma do que decorre além deste querido portão enferrujado e sem cor. Ele range... Bonito.

Sigo pela rua enevoada, vou embaçando-me na escuridão.Meu vestido branco dispersa-se ao luar...

Anorkinda

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Arlan


"...enfim, estas coisas maravilhosas que somente existem na imaginação e nas histórias infantis..."
Fiorella sorria sempre que lia conclusões deste tipo nos livros...
Era ela uma menina que lia bastante e com prazer, mas também Fiorella dava um bom trabalho a seus pais com
seu hábito de passear sozinha pelos campos da propriedade.

Eles lhe enchiam de livros, a biblioteca estava abarrotada de livros infantis, de livros para pintar, de livros para ensinar... Na intenção de que ela esquecesse seus passeios misteriosos pelo jardim. A menina gostava, claro, era bastante imaginativa e ela também escrevia historinhas, como ela chamava.

Fiorella explicava que ela escrevia as histórias que seu amigo Arlan lhe contava. E aí residia a preocupação de seus pais...
Ninguém nunca vira Arlan e a menina se recusava a descrevê-lo, apenas dizia que era um ser fantástico.
E que eles eram amigos a muitas centenas de anos.

......


O céu estava de um azul lindo, com algumas nuvens passeando calmamente por ele. A grama orvalhada e brilhando à luz do sol que nascia... Era um chamado irresistível para Fiorella que pulava da cama e saía a passear antes mesmo de tomar o café da manhã.

A cada dia ele estava num local diferente, a menina adorava isto, adorava surpresas! Arlan era lindo e brilhava de uma maneira única, especialmente acima da cabeça...
Fiorella correu até ele, abraçando seu pescoço e acarinhando seu pêlo lustroso.
- Bom dia, amigo! Vamos bater uma corrida!
E os dois corriam até um ponto qualquer escolhido pela menina, Arlan fingia correr, pois, obviamente, com quatro patas chegaria velozmente ao local indicado... Eles chegavam quase juntos, às vezes ele deixava que Fiorella ganhasse a corrida.

Então, eles sentavam e conversavam, Arlan contava suas adoráveis histórias sobre mundos e criaturas completamente diferentes do que se conhecia por aí... O tempo passava depressa e quando Arlan levantava-se, era hora de ir embora.
A menina o abraçava e despedia-se com promessas de :"Amanhã eu volto!".
Fiorella sem tirar os olhos do amigo, dava três passos para trás e ele desaparecia...

- Fiore! Fiore! Minha filha, onde você estava! Ainda morro de preocupação!
A mãe exclamava sempre que a filha reaparecia no meio da paisagem, magicamente, assim como havia desaparecido horas antes.
- Tudo bem, mamá! Eu estava bem aqui, vocês não me viram?
A menina abraçava a todos que passaram quase que a manhã toda lhe procurando pelos campos, e seguia saltitante para casa, louca de fome e imaginando o delicioso sabor dos pãezinhos doces que sua mãe sempre fazia para o café.

.......


Passou-se um tempinho e Fiorella adolesceu, foi estudar numa escola distante de casa e a mocinha ficou sem tempo para seus passeios com Arlan... Muitas vezes, cedinho, antes de sair para a escola, ela olhava para os campos, com saudades de seu amigo e nas férias ela andava por lá, mas ele nunca mais apareceu. Fiorella acreditou que ele esquecera-se dela.
Algumas vezes, a moça largava os livros e relia todas as historinhas que ela escrevera quando criança, as historinhas que Arlan contava. A leitura lhe fazia bem.


Fiorella fez faculdade de Biologia e começou a trabalhar no Centro de Ciências Naturais. A moça tinha muita afinidade com animais e ali ela sentia-se perfeitamente à vontade. Especialmente com as corças, Fiorella travou uma grande amizade... Conversava com elas, enquanto trabalhava e também nas horas de folga. Este convívio era importante para ela e este mundo adulto a absorvia completamente em felicidade.
Certa noite ela sonhou com Arlan. Ele estava no campo e, de longe, ela ouviu-o dizer:
- Estou com saudades, minha amiga. Logo estarei chegando para lhe ver.


A moça acordou sobressaltada. Seria possível que seu amigo não a esquecera? E poderia ele aproximar-se dela, novamente? Ela não morava mais no campo. Fiorella levantou-se para tomar um copo d'água, o telefone tocou.
- Fiore, você pediu para lhe avisar quando a corça entrasse em trabalho de parto. É pra hoje!
Fiorella passou o resto da noite ao lado do veterinário do Centro de Ciências, acompanhando as dores da mamãe corça. A moça conversava com o animal, tranquilizando-a.


Nasceu um filhote lindo e forte e logo em seguida outro... Gêmeos... Mas, o coração de Fiorella quase lhe saiu pela boca, ao ver o segundo filhotinho. Ele olhava gentilmente para ela, possuía apenas um chifrezinho no alto da cabeça que por um instante, brilhou vivamente:
- Arlan...

Anorkinda

 

 

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Como pode?

Perguntei à Mãe Natureza, quando em dia de passeio, meu céu fez-se triste...reparei nos maus-tratos humanos.
- Mãe querida, como suportas a poluição, a matança, a agressão gratuita e egoísta do Homem a seus encantos?
Numa lufada morna de compreensão, um consolo gigantesco abraçou meu coração...lembrarei pra sempre da voz mansa que me falou:
- Com amor, minha filha, com amor...com muito amor!
Mas, teimosa, ainda em dúvida, novamente perguntei:
- Mãezinha, não estás a vingar-te?
Com aquela doçura a expressar-se aos bebês, ela respondeu pacienciosamente:
-Jamais me revoltei, nem revoltarei...não conheço isto. Estou remodelando-me afim de abraçar melhor a vida que renasce sempre em meu seio, infinitamente...Sentes meu eterno amor?

Anorkinda

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Conexão Elemental

Desde quando as flores misturaram-se a nós,  humanos a vida tem sido mais fácil e porque não?... Mais cheirosa.

Transcendi a este mistério no dia de meu aniversário, mas esta foi uma coincidência rara e feliz, em meio à festa, senti os primeiros sintomas da fusão. As fragrâncias no ar tornaram-se quase visíveis, quase tocáveis e as cores, tão vivas e bonitas, muito diversas da experiência sensória meramente humana.
Minha família percebeu o que me acometia e sorrindo em buliço e pressa, me envolveram em faixas brancas de puro linho... Estavam preparadas para a ocasiao.

Desde quando a ciência uniu-se à sabedoria elemental, a experiência de união com as fadas tem sido um sucesso!... Uma calorosa comunhão.

Progredi nos meus mistérios femininos em dias de grande atividade interior, envolta na brancura dos tecidos, submetida à grandeza de um mundo totalmente novo. As instâncias desta realidade me sujeitavam ao estudo e aprimoramento, mas eu gostava disto, e principalmente, eu amava as possibilidades que se expandiriam em minha vida.
Meus médicos, todos cientistas da natureza, estavam positivos quanto aos resultados que eu lhes apresentaria... Era questão de dias e eu estaria mais poderosa.

Desde que nasci, sinto esta conexão com o Reino Floral e liguei-me ao grupo logo cedo... Meus pais auxiliaram-me muito, sendo eles também fusionados com Reinos Elementais.

Minha mãe era herbária, do grupo das curas. Desde jovem ela esmerou-se em ter em si o conhecimento do poder das ervas, ela criava com o pensamento os bálsamos e essências de que muitos precisavam.
Meu pai tornara-se um dedicado guardião das energias minerais, seu trabalho com os cristais do interior da Terra era lindo e ele criava redes magnéticas de força para qualquer pessoa ou situação... Literalmente, um trabalho brilhante.

Desde que meu processo começou, conheci meu próprio corpo mais intimamente e nele pude inserir as novas sensibilidades com as nuances do clima, com as condições do tempo, com o transcorrer do dia e da noite... Meus poros já exalam orvalhos.

Minha geração está fazendo grandes progressos na comunhão com as fadas, assim como a geração de meus pais se dedicaram a outros Reinos mais necessários à época. Havia muita doença, desequilíbrio e a aura do planeta precisava ser purificada. Hoje estamos focados em reequilibrar os sentidos humanos e a sensibilidade da própria Terra... Nada mais perfeito do que as nuances delicadas das Fadas.

De delicadeza e sensações da natureza já me sinto possuidora, comecei a ler as mensagens das estrelas nas pétalas das flores... Num avançado estudo astrológico.

Ao começar a puberdade comecei o tratamento com meus médicos-cientistas, eu e um grupo de meninas também púberes. Foram tranquilas todas as sessões laboratoriais, as
reuniões para meditação e principalmente as aulas onde apreendemos muito sobre a missão a que nos destinamos com paixão desde tão tenra idade... Éramos um dos inúmeros grupos de Fadas.

De destreza e movimentos sutis também já me reconheço, meus poderes tem se desenvolvido facilmente e com fluência posso sentir-me a volitar... Num espaço imaginativo e surreal.

Ao terminar esta fusão serei capaz de auxiliar as pessoas na materialização de seus pensamentos, como uma representante do Reino das Fadas farei a ligação da mágica com a realidade. Meus toques suaves em objetos e desejos serão o refinamento final deste grandioso trabalho... A purificação e aprimoramento da raça humana.

Das redes energéticas já totalmente alinhadas em nosso orbe, dos conhecimentos científicos e medicinais já completamente inseridos no consciente da coletividade e outras áreas também divinamente administradas por nossos empreendedores abnegados... Já pode-se respirar uma atmosfera de luz neste planeta.

Ao garantir à sabedoria natural o seu espaço comungado e respeitando o livre-arbítrio de cada ser vivo, podemos, enfim, ser uma única família... Unidos em amor e respeito.

Das coisas que aprendi e desenvolvi, me encantam e entusiasmam as celebrações,tão alegres e amorosas que se estendem por dias, num revesamento de festejos. Em breve se dará a festa de coroação de meu grupo das Fadas, assim que estivermos totalmente fusionadas, eu e minhas colegas... Plenamente aptas em nossos novos dons.

A minha expectativa está concentrada no meu novo nome, será conhecido durante a cerimônia, eu fusionada com minha Fada Interior o escolheremos, por intuição.  Estou preparando o encantamento de apresentação para este dia especial... A flor Margarida me emprestará sua cor e seu vigor.

Mais um pouquinho de paciência, a Ciência da Paz ... E estarei dentre as centenas de Mulheres Fadas absorvendo e ao mesmo tempo espalhando a essência perfumada da vida por toda a Criação.

Anorkinda

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Fadário

Ela não sabe, mas eu lhe encomendei o vestido. Escolhi a cor vermelha... É a cor que melhor veste a mulher loira como eu.
Acompanho cada ponto costurado, alinhavado, bordado. Lindos detalhes em dourado... Acompanhará a delicadeza de minhas mechas, farei um penteado com aneis bem definidos.

Ela vai à festa, com o vestido no modelo que eu defini. É uma pena que ela não fará o mesmo sucesso que eu faria... Ah... se todos pudessem me ver...
Mas eu estarei lá. Desfilando no seu corpo, radiante, linda e feliz. Ela dançará com meu homem.
Eu sentirei novamente seus braços em minha cintura, os rodopios da valsa, as tonturas da paixão...



Ela não sabe de seu destino, ligado ao meu. Fadário... O mesmo amor e eu avisei que jamais desistiria. Preciso apenas da valsa, uma única valsa nos braços dele...
E eu o trarei para mim. Estaremos para sempre juntos, enlaçados no mais lindo futuro. As mais belas mulheres merecem este tipo de desfecho...

Está tudo pronto. É o dia do baile, com o vestido no corpo de Júlia, o encanto é possível e eu tomo seu lugar. Seu corpo é magro demais, moreno demais... Mas é quem tem acesso a ele, paciência!

- Júlia! Estás encantadora! - Thomas olha-me nos olhos e estremece. Ele sabe!

Desconcerto-me um pouco. A valsa começa, a minha valsa... E tudo está orquestrado, não haverá erros.  Thomas enlaça-me a cintura, a emoção me aflige os sentidos. Preciso concentrar-me, não haverá erros.

No meio da dança, em pleno rodopio completo, Thomas solta meu corpo. Estendo as mãos, procurando o amparo das suas... Não encontro, o impulso empurra-me contra a parede.

- Não, Elaine! Nunca irei com você!

O corpo moreno, magro e pálido jaz, estirado e morto junto à parede do principal salão de bailes da cidade.

Anorkinda

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Lembrança fria

Caminhadas matinais eu fazia ao ir para o colégio.
Saudade do cobertor, do travesseiro, meu parceiro.
Ranzinza, eu andava de cabeça baixa conversando com as árvores do percurso.
Elas estavam transpirando o orvalho sagrado e me ouviam pacientes e sapientes.
Eu lhes perguntava do dia-a-dia, quem por ali havia passado...muito carro? muitos gritos?
Quem percorria aqueles caminhos quando o dia acordava?
Porque eu ali passava às horas mortas, portões cadeados, carros esquentando motores nas garagens, nuvens de vapor saíam de minha boca quente e mau-humorada.
Queria esquecer que minha cama ficara pra trás e o frio do sul me castigava o nariz vermelho e gelado.
Árvores floridas de cor-de-rosa me sorriam, eu lhes devolvia um sorriso gozado. Nem cão latia àquelas horas e o cheiro do frio me segue ainda agora.
Um cheiro úmido de névoa e promessa de sol.
Eu sentia que as coisas simples e silenciosas do mundo, como as pequeninas árvores floridas eram os únicos deuses que existiam e acompanhavam meu caminho pra que eu não chorasse a frustração de um dia.

Anorkinda

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Meu Gênesis

Pela mão do anjo, eu vim aninhar-me e formar-me num fluxo criador. Moldar um corpo material, desde suas primeiras células, união feminino/masculino, gametas do amor.
Tudo em muito parecido com a nuvem de prazer onde eu vivia, fluxos de sentimentos por mim passavam como brisas e encantamento. Quis ali fazer o meu céu a criar meu mundo e minha forma num êxtase divino.
Mas a verdade de um mundo material logo achegou-se em meu paraíso... Senti os primeiros tremores do medo a balançar-me o fluido amniótico, era minha mãe a temer.
Senti suas lágrimas numa acidez que me ardia o corpo e percebi a nossa união e do quanto dela eu dependia.
Juntamente com minha formação, eu ocupava-me agora das emoções que às vezes me divertiam e movimentavam minhas águas mas por outras me assustavam o porvir.

 Das leis desta terceira dimensão eu conhecia teorias, mas nunca as tinha vivenciado na carne, no fluido dos sentimentos...
Da consequência de um ato de violência ou de um falso amor, eu também não tinha parâmetros para me guiar, meu pequeno paraíso podia se transformar em inferno a qualquer momento... Era a informação que eu recebia no pulsar descompassado do coração de minha mãe, nas vezes em que ela sentia-se ameaçada. E eu nem sabia porquê!
Nestas ocasiões eu sentia muita vontade de sair e conhecer o que havia lá fora que a assustava, a atormentava e aterrrorizava minha vida em formação. Mas não havia o que fazer, eu não estava pronta. Não era hora para uma revolução no desenrolar de minha gênese.

Foi preciso mesmo esperar pela maturação da carne. E minha mãe sempre a comunicar-me suas emoções, eu a estudava... Após os momentos em que o medo me atingia, eu observei que ela vagarosamente acalmava-se ao conversar baixinho e sensações amáveis me invadiam também. Com quem ela conversava? Eu não sabia. Mas esta paz me trazia lembranças de onde eu vim, às vezes eu quase sentia a mão daquele anjo que me guiou até aqui.
Aprendi que mesmo na matéria, meu amigo estará comigo, afastará o perigo. Ele me ensinará a lidar com as pessoas. Será preciso apenas com ele conversar, minha mãe o demonstrou. Ah...senti-me encorajada, vida nova, aqui estou!

Anorkinda

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Meu mágico vaso de cristal

Quando muitos amigos começaram a me fazer perguntas sobre as coisas do mundo e eu sempre sem respostas... Um vaso lindo de cristal que vivia instalado em cima da mesa da sala, uma mesa nunca usada, era adorno, começou a brilhar mais fortemente e a piscar sempre que uma pergunta se delineava em minha mente. Eu tentava responder as questões de meus amigos, mas não tinha superiores poderes... O vaso, solícito, se propôs a ajudar.
E começou a me contar o que se sucedia ao longe, do outro lado do mundo, escondido sob tapetes ou mesmo em paragens siderais... Mesmo assim, continuo a não responder a perguntas. Porque é tanta coisa cabeluda que fiquei sabendo... Melhor é que meu vaso amigo fique esperto e não espalhe para mais ninguém o que ele sabe!

Anorkinda

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Mother Earth

Dia de sol

Me sinto tão bem. Este é meu pedaço de paraíso, meu lugar sagrado, onde conecto-me as minhas proprias forças, sem embaraços.

Desfruto tudo o que posso neste hiato do tempo, destes meus filhos devotados, respeitosos de meus desejos e necessidades. Aqui eu posso contatar-me com as estrelas, aqui sou filha do Vento e da Lua, sou súdita do Sol e realizo minha humilde trajetória a seu redor, como deve ser.

Aqui minha face apresenta canyons, vales, grandes e caudalosos rios e de um litoral a outro a grande extensão deste solo é habitada por diversos seres vivos, animais e vegetais. Eu me regozijo neles. Trocamos energia da forma mais íntima e assim me fortaleço para conseguir interagir com boa desenvoltura em outras paragens mais conturbadas.

Aqui, meus filhos, humanos que são, também lutam, disputam, amam, sofrem mas jamais desrespeitam meu nome ou mesmo esquecem-se do que os mantém vivos: a minha mão. Os meus suspiros que são brisas a alentar o bravo exaurido... O meu calor a acariciar-lhes os pés doloridos... O meu sustento oferecido em sacrifício vegetal e animal... As minhas fontes de água pura que lhes hidratam o viver...

Mas eu sei que vai anoitecer neste meu santuário, a hora se aproxima. Estremeço. Peço a meu Pai Sol, Soberano deste lugar sagrado que envie sua firmeza e coragem através de seu reflexo na Lua, e esta, sábia anciã, vigie meus filhos amados a caminhar pela noite dos tempos...



Aquele que não estiver pronto para enfrentar a morte no final de sua vida, não estará em paz quando a noite cair.
(Índios da Tribo Chippewa, do Lago Huron)


A noite

A noite chegou em embarcações que singraram, corajosos, meus mares turbulentos. Vieram do Leste, decididas a escurecer com o peso de seus fardos, a atmosfera deste pedaço do paraíso. E espalharam sangue, sem consagração. E rezaram aos céus, sem paixão. E tomaram à força cada centímetro deste chão. De suas próprias desolações engendraram dramas, intrigas, guerras...

Os filhos legítimos daqui, animais, humanos, vegetais e minerais... Todos foram usurpados, corrompidos, testados à exaustão em suas integridades. Amparados pela força e firmeza dos invisíveis elementos irmãos, os ditos ameríndios, mantiveram-se vivos.

De alguma forma tentaram ajudar a seus invasores, tentaram delimitar seus limites, tentaram mostrar seus conhecimentos. Eles sabiam que ao transpor a noite, a madrugada faz-se fria, antecedendo a um novo amanhecer... E por isso perseveraram a esperar.

Dos enredos quentes, a ferro e fogo cruzados por este extenso território, rumo ao Oeste, muita coisa posso contar. Está registrado em minha memória, a passagem ebuliente desta noite em pele branca, deste desterro em solo próprio. Mas prefiro abraçar estes fatos com meu manto de amor e compaixão... Entoando uma canção de ninar.




O sagrado tambor irá novamente fazer ouvir sua voz.(Extrato da Profecia dos Sete Fogos dos Anishnabés)



Madrugada fria

Antes do amanhecer o tambor soou, despertando os filhos desta terra. Hoje estão espalhados pelo globo, mas mantém a sua terra do Sol entranhada em seus corações. Enquanto meus filhos brancos dormem, os vermelhos dançam ao pé do fogo e conversam com as estrelas, seus guias...

A Estrada Vermelha Sagrada está novamente visível, é madrugada e faz frio. Mas as luzes do alvorecer iluminam de forma incisiva, há muitos trilhando meu Caminho, em direção à Paz de um Novo Tempo.

Quando então, eu poderei suspirar e sorrir novamente.. E serei plenamente um Todo Paradisíaco.



É tempo dos Índios dizerem ao mundo o que sabem sobre Deus e a Natureza. Então vou lhe dizer o que sei e quem sou. Vcs devem ouvir, pois têm muito a aprender.
(Mathew King, Yribo Lakota)

 

 

Anorkinda

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Os cabelos balançam ao vento

Estou com medo. Mas medo mesmo, de sair no frio. O vento está assobiando macabro... Mau agouro.
Se caminho contra o vento, este me tira o ar, o fôlego... Não vou sair hoje. Não quero.
O telefone toca, minha mão coberta pela luva grossa que pouco ameniza a frieza dela, mal consegue teclar...
- Você não pode deixar de vir... Preciso tanto de seu apoio!
Não posso deixar de atender um pedido dela... Agasalho-me mais ainda e saio. O vento me fere prontamente parece que estava a esperar por mim. Assim como ela...

Alice, sempre bela... Protegida do frio deste inverno tão gelado ( o mais gelado de todos os que presenciei na vida) com todos os acessórios na cor preta, luvas, gorro, sobretudo, botas, cachecol... Contrastando com sua palidez e louro cabelo acetinado.
Alice me esperava... No rosto enlutado, marcas de uma noite mal-dormida e de um jejum forçado. Ela precisava de mim, seu apoio em todas as horas difíceis.

O sermão do padre encomendando o corpo de meu amigo está no final. O vento frio castiga a família que chora a morte e treme de frio. Alice me vê e corre para mim... Agora ela chora o que represava sozinha.
Eu a amo tanto! Nossa amizade sempre foi fortalecida por este amor impossível... Tão linda, viúva e frágil...

Ao abraçá-la, o vento veio de encontro a meu rosto... Forte, súbito.
Fiquei sem ar, fechei os olhos e ao abri-los novamente vi coisas que não deveria ver... Em meio às pessoas que ali velavam meu amigo, estavam muitos espíritos. Alguns tristes, alguns rezavam, outros abraçavam os vivos.
Olhei nos olhos de Alice, eles estavam tão espantados quanto os meus...
Será que ela também estava vendo os espíritos?

Alice começou a gritar e me chamar. Será que eu estava em transe? Eu a estava assustando... Alguns espíritos me abraçaram, querendo tirar-me dali. Mas eu precisava acalmar Alice, ela está em choque! Estou com medo destes fantasmas todos. Nunca vi fantasmas, por que agora? Por que hoje? Preciso cuidar de Alice... Eu a amo tanto!

Tento me acalmar, afasto os espíritos... Alice desmaia. O vento parou desde que perdi o fôlego, não há mais vento... Mas observo que árvores balançam, as pessoas continuam fustigadas por ele... Porém, eu não o sinto!
Todos os espíritos ali presentes, olham para mim, querem que eu veja algo... Sinto medo.
Viro-me. Atrás de mim, meu corpo estendido ao chão, morto.
Os cabelos balançam ao vento.

Anorkinda

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Pra quando eu voltar

Era uma tarde fria que se estendia lânguida pela paisagem tranquila... Instabilidade, tensão e uma quentura nauseante apenas a meu interior perturbava. Acabara de naufragar, eu que tão habituada estava a navegar sozinha por estas águas... Mas a tormenta hoje fora implacável!
Há alguns dias eu observava o céu e sabia que ela viria forte, porém desdenhei de seu poder e segui com meus planos e minha rota... Eu deveria ter recuado... Mas que bobagem pensar no que deveria fazer e não se fez, o momento agora é trabalhar com o que se tem.

Eu sentia que o frio aumentaria ao cair da tarde... Nada de minha embarcação veio comigo até a praia, minhas roupas molhadas... Preciso secá-las. Observo toda a calmaria ao redor, nenhuma semelhança com a borrasca que caíra a pouco. O mar está levemente agitado, mas já não grita em furor como antes...

Estendo minhas roupas na vegetação à beira-mar... Venta. Protejo-me encostada a uma grande rocha, em sua solidez ela resguarda o calor do sol que a banhou durante toda a manhã. Sinto-a. Preciso ter a sua firmeza para encontrar o rumo de casa. Onde estarei?

Este lugar me é familiar como quando se quer lembrar de um sonho, mas ele não vem à memória... É uma sensação vaga. Olho para aquela calma toda e parece-me que ela já fez parte de mim, um dia.

Visto-me e procuro por um abrigo para passar a noite. Não vou adentrar-me na ilha, encontro logo perto da grande rocha uma árvore com um oco ótimo... Sento e espero a noite chegar e espantar dele uma coruja, moradora por direito e natureza.

Penso em minhas possibilidades, não posso esperar por ajuda náutica... Ninguém é responsável por ninguém nas águas deste oceano imenso, ninguém perceberá meu naufrágio. Precisarei alcançar minha própria salvação!


Quando amanhece estou nauseada de fome e por não ter dormido quase nada naquela desconfortável toca de coruja. Procuro frutas silvestres... Eu, como todos de minha aldeia, sei sobreviver sozinha em lugar inóspito.


Separo alguns gravetos para secarem ao sol, farei uma fogueirinha para o almoço mais tarde. Olho para a pequena floresta que se segue ao interior da ilha, não é densa, é ensolarada e muitos pássaros cantam  esta hora da manhã... Cantos combinados, parece uma sinfonia alegre, alguns deles passam rasantes em direção a areia da praia.

Não tenho tempo para devanear mas esta cantoria e estes pássaros cavoucando a praia me parecem tão familiares...


Começo a trilha ilha adentro, preciso planejar uma maneira de escapar-me daqui e voltar a minha vida rotineira pelos mares da região. Um animal me fez parar, olhava-me tão atentamente, também ele parou. Sua refeição ficara estagnada em meio a boca... Parecia que ele me reconhecia, se eu lesse pensamentos, diria que ele pensou: Oh! Há quanto tempo! Era um cervo. Grande, bonito, lustroso, com uma imponente
 galhada.

Me veio um flash à mente de um filhotinho de cervo, dengoso, amigo, de olhar atento... Não sei o que são estas sensações todas, sigo pela trilha, o cervo começa a acompanhar-me. Presto mais atenção a ele do que ao caminho ou às ideias que preciso ter para voltar pra casa.

Quando percebo entrei numa pequena clareira, perfeitamente circular há matos e trepadeiras crescidas, mas vê-se que um dia aquele espaço fora cuidado por mãos humanas. E no centro dela, uma pequena casa... Senti-me sem pensamentos, um arrepio perpassou-me o corpo, o cervo seguiu até a casinha e parou cheirando uma porta escondida pelas plantas.

Mas eu simplesmente não podia ir até lá... Minhas pernas não moviam-se. Sentei ali mesmo temendo desmaiar. Olhei a volta e comecei a nomear as árvores ali existentes. Ali uma macieira de frutos bem cheirosos, aquela outra é um pessegueiro com suas lindas flores... aquela outra... Como eu sei delas? Fecho os olhos. Revejo minha vida, sempre singrando, compartilhando com meus amigos da aldeia das pescas, das aventuras, dos mistérios do mar. Como posso saber das coisas desta ilha?


Olho a posição do sol, já seria hora de voltar a praia e preparar algum almoço. Mas não estou disposta a abandonar esta clareira, sem decifrar todas estas sensações estranhas. Levanto-me e vou até a porta da pequena casa, o cervo está alimentando-se por perto. Quebro vários galhos de uma trepadeira que reconheço ser plantada por alguém, não é nativa. Abro a porta sem dificuldade... Meus olhos deparam-se com um sonho!

Reconheço extamente tudo o que há ali e misteriosamente os móveis não estão estragados ou mesmo empoeirados. Está tudo razoavelmente limpo, se não fosse o mato crescido impedindo a entrada e a abertura das janelas, eu diria que alguém vinha limpar aquela casa de vez em quando.

Revisto tudo, tudo, tudo... Conheço tudo o que há ali! Mesa, cadeira, armários, a um canto, duas camas... Em cima do travesseiro vejo uma carta. Em papel bonito, feminino, a letra infantil mas delicada, de menina, penso eu.

"Para quando eu voltar...

Esta minha casa querida onde vivi desde que nasci, vai ficar me esperando, meu amigo pequeno cervo vai ficar me esperando, minhas árvores preferidas também. Minha mãezinha diz que vou esquecer daqui, porque vou conhecer muita coisa bonita lá fora, mas eu não vou e quando eu voltar tudo estará aqui para mim.

Eu não quero esquecer de ser feliz!"

Atiro-me à cama que agora lembro que era de minha mãezinha... Lembro perfeitamente de quando ela disse que todas as pessoas esquecem-se completamente da felicidade de ser criança. Não mamãe... Eu não esquecerei novamente!

Levanto e corro a abrir as janelas pelo lado de fora, arrancando os excessos das trepadeiras... Estou de volta e daqui, do meu lugar, eu poderei lançar-me a novos desafios e navegar pelos antigos também, por que não? Agora sei que todas as soluções me encontrarão assim como eu encontrei-me...

Anorkinda

 

Radiação

Faz tempo que morri. Não sei quanto tempo, principalmente porque não tem anoitecido mais desde que desprendi-me de meu corpo. Perdi o sentido das horas, me atenho a vagar pelos cenários familiares.
Minha casa, a vizinhança... Arrisco-me a bairros mais distantes, mas raras vezes. Temo. Já me basta o desconhecido desta morte-vida. Há alguns dias não saio de dentro de casa, minha antiga casa...
Eu não sei o que aconteceu, mas algo aconteceu. E foi no mundo dos vivos. Ah... estarei enlouquecendo de tanto pensar sozinha? A única mudança nestes cenários frios e vazios que se dá, volta e meia, é quando uma fita amarela aparece amarrada a minha árvore das lembranças... E faz muito tempo que a fita não reaparece...

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Solidão... Nunca me contaram que a morte era esta solidão devastadora. Apenas minhas lembranças são entretenimentos e confortos para o tédio e o vazio. Como eu gostaria de ouvi-la gritar meu nome, como da última vez:
- Turíbio! Turíbio!
Seguro forte a fita amarela do vestido dela... Não separo-me desta memória concreta que veio comigo, habitar este espaço fora do tempo. Será que algum dia encontrarei-me com Deus? Ou com ela?...
- Cassandra! Cassandra!
Já chamei tantas vezes, jamais cansarei. Até encontrá-la... Mas hoje nossa árvore das lembranças desapareceu. Primeiro, ela piscou, numa luz que cegaria, se eu estivesse vivo... Depois a árvore aparecia e desaparecia por breves momentos e afinal, sumiu...

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Permaneço a observar minha árvore, sem nenhuma fita, sem nenhuma vida. Sentia-me segura dentro de meu quarto, vazio e morto como eu, mas era familiar. Mas hoje não há conforto em nada, estou inquieta, se ao menos a fita amarela aparecesse... Eu saberia que era ele, a pensar em mim, de certa forma a acompanhar-me.
Estou enlouquecendo mesmo ou a árvore piscou? Piscou novamente!
Corro para perto dela e uma luz imensa banhou tudo a minha volta...

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Ela cantava baixinho uma canção romântica quando Turíbio chegou e ficou quieto, escutando, não queria ser visto, ainda não... Os cabelos louros dela caíam em cachos pelas costas, movimentando-se no ritmo da música, vagarosamente. Linda demais...
- Cassandra...
- Ai, amor, que susto, não te vi!
- Eu estava aqui, te admirando. - Disse num sorriso o rapaz de rosto franco e porte adolescente de quem promete ser um homem alto e forte.
- Você e suas manias... - Cassandra se sentia sempre muito bem em companhia dele, que era seu namoradinho desde a infância, amigo para todos os brinquedos e agora de todas as conversas e chamegos de amor.
- Este momento foi tão bonito que eu quero guardá-lo na nossa árvore das lembranças... Posso colocar esta fita amarela?
A moça imediatamente tirou a fita que lhe enfeitava o sedoso cabelo. Mas ela olhou para fora da varanda onde estavam:
- Veja o temporal que está chegando!
- Vamos logo, antes que a chuva despenque lá do céu. - Falou rapidamente o rapaz, enquanto pegava a fita adorável de sua amada.
Correram, às gargalhadas, de mãos dadas em direção à arvore. De repente, um trovão estremeceu simultaneamente os corpos dos dois namorados e um raio os separou com  violência. Caíram os dois, mortos.


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Cassandra sequer teve tempo de tentar entender o que lhe acontecia... Ela olhava, atônita, a cidade, a sua cidade completamente vazia de vida. A moça andava pelo terreno onde claramente algo terrível acontecera. Não havia mais grama, plantas, pássaros, nada.
Foi o clarão, pensou. E não teve tempo de pensar mais nada... Cassandra viu Turíbio que a fitava, incrédulo. Ele olhava na direção da árvore, sua estimada árvore que desaparecera e via Cassandra... Será isso possível?
Ela aproximou-se.
- Turíbio! Turíbio!
Abraçaram-se em lágrimas e sem tempo para pensar, a árvore reapareceu, piscou e Cassandra pegou a mão de seu namorado e correu para ela, novamente. O clarão os levou, finalmente reunidos.

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Nenhum ser-vivo permanece na cidade radioativa, nem mesmo os semi-vivos.

Anorkinda

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TARDE DE VERÃO

O dia divagava em raios de um sol fervente. No ar, a fragrância retirada à força de flores coloridas. No lago, patos refrescavam-se em aparência tranquila. Pessoas caminhavam ao longe e nuvens pequeninas zombavam de minha procura por sombras. O cenário tinha uma atmosfera de espera, uma sensação trágica em ausência de esperanças.

De repente, um silêncio apossou-me, quase me derrubou. Veio com violência e fêz-se exclusivo e envolvente. Emocionada, comecei a perceber um pequeno batimento que aumentava à medida que minha atenção concentrava-se.

Soltei em um soluço a pergunta:
- O que falas baixinho, meu coração?

Fechei os olhos e imagens caleidoscópicas me responderam em uníssono, de uma forma contundente e figurativa. Mostrava-me o coração, este chakra mágico das emoções, estas imagens: aves se encontrando em carinhos, flores desabrochando em alegria, peixes singrando rios em abundância, estrelas e sóis em dança cósmica e rostos amigos sorrindo pra mim!

Aos poucos o batimento cardíaco transformou-se em música suave e em sussurro firme, meu coração disse baixinho:
- Eu te amo!

Anorkinda

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TransMutação

"Conseguimos escapar da fúria do tempo."
Esta frase ainda ecoa em mim a cada respiração que dou hoje em dia, nesta minha nova vida. Ah... Como foi nada fácil chegar até aqui!

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Decidida marquei no calendário o dia em que se iniciaria minha mudança. Eu sabia que era um pequeníssimo passo, embora eu não fizesse ideia das agruras que adviriam dali por diante.
Mas segui, decidida. Decisão era meu lema. Da mudança eu não desistiria. Eu já tinha visto seres transformados, que não temeram a mutação. Eu sabia que podia.

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Batiam os sinos das dezoito horas na pequena igreja católica do bairro... Foi a primeira vez que os vi. Eram dois... Seres humanos? Não saberia definir. Eram lindos, translúcidos e sorriam em paz. Eu invejei aquela paz. Homem e mulher? Não saberia definir. Eram plenos, completos e falavam com o olhar. Eu não entendi aquela linguagem.
Outras pessoas também viram esta manifestação da beleza, mas correram, fugiram, gritaram... Eu fiquei, foquei e desejei. Decidi ser igual a eles.

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- Quando este processo terá fim? Perguntava-me desesperada depois de longos e difíceis anos de trabalho dedicado. Já me era impossível discernir se eu estava no caminho certo. O que me parecera a direção certa, já me enchia de dúvidas.  E se eu errar? No que irei me transformar? Ou pior,se eu continuar igual?
Não poderia ser maior a tortura de permanecer humana, limitada ao tempo. Este cruel vilão que nós mesmos criamos e tomou o poder sobre nós!

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Um jardim agradável, flores e insetos e pássaros conversavam entre si, amavelmente... A harmonia se sentia como brisa a tocar-nos a face. Eu já conhecia bem este lugar. Era aqui que eu me refugiava em meus estados de meditação. Mas hoje eu o vejo num esplendor maior!
Meus novos sentidos me dão uma dimensão maior das cores, das sensações emitidas pela flor que desabrocha... Da alegria das borboletas em seu voo de celebração à vida...
E eu sorrio em paz. Comunico-me com o olhar...

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Foi assustador aquele domingo, que parecia ser mais um domingo banal... Eu já me acostumara aos processos da mutação. Aos dias de prostração e desânimo, às dores de cabeça e na coluna... Eu estava ambientada inclusive ao acoplamento, em mim, de emoções alheias, de sentir o que outros sentiam, de emocionar-me com que a outros emocionavam...
Mas desvencilhar-me de meu corpo físico, pele, ossos, pelos, carne... foi um choque. Saber o que vai acontecer é muito diverso de ver acontecer. O curioso foi não sentir dor alguma, apenas a conhecida sensação de que algo meu, algo que me identifica,está desaparecendo... Isto aconteceu com todas as outras transformações prévias, mas perder o próprio corpo físico... Eu pensei que estava preparada!
Foram momentos de terror. Momentos. Pois foi rápido. Sutilizaram-se as células, átomos, o DNA estava transmutado.
Eu olhei-me com o mesmo pavor que vi naquelas primeiras pessoas que avistaram os seres translúcidos. Quis correr, mas eu não poderia fugir de mim.

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"Precisamos escapar da fúria do tempo"
Hoje sei que foi isso o que disseram aqueles seres plenos que falavam com o olhar. Agora eu olho pra vocês... Irão ficar ou fugir?

Anorkinda