Contos

 

 

 

Vida natural

À mesa, os moradores da casa e a visitante... As conversas banais habituais também sentaram-se e acomodaram-se entre uma garfada e outra. Apenas a visitante parecia escolher palavras enquanto mordiscava a tenra salada. Enfim, ela saiu... a pergunta engasgada:
- Vocês não sentem pena do animalzinho que estão comendo?
As reações foram diversas... Fabinho, adolescente, nada acostumado a sociabilidades, tentou segurar, mas gargalhou bonito. A mãe, alçou as sobrancelhas e fez cara de dó para a visitante. O pai, resmungou secamente:
- Não, oras.

Ela chegara nas primeiras horas da tarde, vinha sobrecarregada de malas e manias... 'Passe uma temporada num sítio', o médico aconselhou. Vilma estava stressada, à beira de um ataque de pânico. O sítio de seu primo Paulo era ideal, gostoso e tranquilo. Vera pediu para passar alguns dias lá e poderiam colocar em dia as fofocas de família.
Mas a vida os distanciou demais, primos tão amigos que eram, hoje os assuntos não se conjugaram com facilidade.
Vilma era vegetariana, ativista a favor dos direitos dos animais, ecologicamente correta e tudo o mais...Paulo vivia uma vida simples, tirava seu sustento de um pomar de laranjas e bergamotas, mantinha uma pequena granja e plantava quase tudo do que precisava para colocar na mesa.

O restante do jantar foi feito em silêncio, pois este instalou-se comodamente na nuvem de desconforto produzida pela pergunta desengasgada da visita. Ao cruzar os talheres sobre o prato e esticar as pernas debaixo da mesa, o pai começou a falar:
- Meu avô aprendeu com seu avô uma coisa dentre tantas coisas... Que alguns animais se ofereceram como alimento ao homem. Se tu fores ver, isto é muito natural, é a lei da vida.
Paulo, olhou com carinho para sua prima, enquanto palitava os dentes num meio sorriso.
- - É mesmo... o vô Lauro, querido... Nunca conversei muito com ele.
- Tu estavas sempre estudando ou passeando, não vinhas quase ao sítio.
- É verdade. Perdi muita coisa, será?
- E ganhou outras, não foi?
- Ganhei... stress, ansiedade, cansaço.


No sítio, os doces não eram industrializados e a água era de poço. Paulo e a esposa estudaram, mas não permitiram-se ser pegos pelas cobranças da vida moderna de ter sempre mais e mais. O filho estudava, mas passava a maior parte do tempo no lombo do cavalo, troteando pela vizinhança.
Vilma já não lembrava como era a água pura que não fosse a engarrafada. Vivia contando os carboidratos dos alimentos e a carne era considerada inimiga número um da boa saúde.


Cíntia, a mãe, trouxe a sobremesa de doce de laranja. Ela mesma fez.
- Obrigada, Cíntia. Obrigada, vocês por me receberem, não sei quantas vezes vou precisar agradecer. Disse Vilma, saboreando o doce com sabor de infância na casa da vó.
O cheiro de laranja impregnando o ar e os sentidos naquela doçura tranquila de um fim de dia equilibrado, deu a visitante um novo ânimo.

Nos dias que se seguiram, Vilma tomou parte das atividades do sítio, ora em companhia de Cíntia, ora de Paulo, até acompanhou Fábio em suas cavalgadas pelo campo. Fez sol e fez chuva e Vilma relembrou como é acompanhar o ritmo da natureza. Há dias de muita atividade e outros de calmaria, a espera do sol ou mesmo de uma aragem mais fria.

- Vocês vem me visitar logo, não vem?
Vilma ia voltar para casa, malas prontas, manias assumidas, perdidas entre uma árvore e outra do aprazível sítio de Paulo.
- Vamos sim, prima. Vamos fazer um churrasco lá no seu apartamento!
A risada de todos clareou bastante aquela despedida.
- Só vegetariano, Paulo. Churrasco vegetariano.
Abraçaram-se já com saudades e aquela felicidade que aperta mais os laços de família.

Anorkinda