Infanto-juvenil

 

 

 



No mundo imaginário de Laurinha e Mário

- Tô pra te dizer que tudo aqui é um saco! Um saco cheio de chatice, hein, menina!

Laurinha encarava o rapaz que sentou-se a seu lado no sofá da sala, há uns três minutos. Ela sabia que ele apareceria, pois seu cérebro estava dando uns cliques e chiliques desde que começara a entender muita coisa sobre a vida e coisa e tal... (Estava perdendo a inocência...)

O tal rapaz sentou-se e ficou ali esperando que ela gritasse chamando os pais ou algum protetor super-esp(e)acial. Mas ela não espantou-se e decidiu testá-lo. Logo, ele perdeu a paciência e começou a falar da chatice... Ora, que primário!...

- Teu nome é Mário, não é?
- Se tu quiser...
- Então, Mário, como nós vamos conviver muito daqui pra frente, fica acertado que eu invento qualquer coisa e tu me segue, ok?
- Certo, mas como eu sou mais velho, vou precisar de dar uns toques de vez em quando...
- Hãn, hãn... Só imagino... E por falar em toques, tu tocas alguma coisa? Sou amarrada em música!

O rapaz tirou do bolso traseiro de sua calça jeans desbotada, uma gaita de boca e tocou algo bem alegre. Laurinha começou a dançar pela sala, chamando a atenção da mãe:

- Que isso, Laurinha, dançando sem música?
- A música está na cabeça, mãe, na alma e no coração!

Laurinha rodopiava e sorria, feliz com seu amigo mais que perfeito, imaginário!

- Vá lavar as mãos para o almoço e me ajude a pôr a mesa.

.....

Laurinha tanto conversou e divertiu-se com seu amigo Mário, que ela nem lembra mais se mais conversou ou mais se divertiu nas últimas semanas.
Eles compuseram músicas memoráveis ao som da gaita de Mário, instalaram na biblioteca um aparelho conversor de clima, para que as tardes quentes daquele verão se transformassem em campos de gelo e neve, mais condizentes com a expectativa do Natal que se aproximava.
Também eles leram muitos livros nunca lidos antes por nenhum deles, uns tais que o pai de Laurinha guardava na última prateleira, a mais alta... Davam muitas risadas das sandices que os 'amantes' se prestam a cometer nos romances...

Mas também tiveram puxões de orelha e discussões, como no dia em que Laurinha resolveu que iria 'ganhar as ruas', como a moça que ela viu num filme.
Ela iria pegar um ônibus qualquer, descer no fim da linha e passear por ruas desconhecidas, para conhecer pessoas desconhecidas... Mário não quis acompanhá-la, disse que era burrice e que perder-se e ver a família dela ter ataques de preocupação seria uma chatice.

- Eu vou sozinha de qualquer jeito. Tu é imaginário, esqueceu, Seu Mário? - Laurinha estava numa birra só.

Ele ficou sentado na soleira da porta, fingindo fumar, enquanto Laurinha já abria o portão para sair.

- Por que tu tá fingindo que fuma?
- Só porque sou imaginário não posso imaginar também?
- Isso não é um bom exemplo pra mim, sabia?
- Ha ha ha ha, cigarro imaginário não vicia nem faz mal, experimenta um...

Laurinha fingiu que pegou um cigarro do maço imaginário que Mário lhe oferecia. Acendeu-o e tragou com gosto.

- Sabe, aqueles chocolates em forma de cigarro?
- Já ouvi falar... respondeu o rapaz.
- São uma porcaria. Um gosto de gordura sebosa, só serve pra fingir que fuma mesmo e jogar fora.
- Então, o meu cigarro é melhor.
- Muito melhor.

.......

Enfim, o Natal chegou e a família que vinha dando sinais de alvoroço, desembestou de vez. Laurinha e Mário observavam tudo, dando altas gargalhadas.
Quando era preciso ajudar na decoração ou carregando compras de supermercado, Mário sumia porque segundo ele, não suportaria tanta chatice. Mas quando o assunto era culinária, lá vinha ele, arregalar os olhos para os biscoitos de mel que Laurinha cobria com glacê ou babava os beiços enquanto Laurinha polvilhava canela nas rabanadas.

- Papai Noel é que é feliz... olha quanta gostosura vocês fazem pra ele!
- Papai Noel não existe, seu besta!
- E daí, eu também não!

Quando a casa começou a exalar o cheiro do peru assado, Mário disse que precisava sair ou ele se jogaria dentro do forno com fogo e tudo, tamanha era sua gulodice.
Era de tardezinha, ótimo para passear, pois a tarde fora quente e abafada. O mundo todo estava correndo para chegar a tempo em casa e tomar banho  e vestir-se elegantemente, como se a ceia de natal fosse o baile do Príncipe Real!

Laurinha estava suada e empolgada com a ideia de fugir do banho, imaginando sua mãe desesperada olhando o relógio a verificar que não teria tempo para fazer todos os quitutes planejados e ainda procurar por Laurinha a fim de aprontá-la para o 'baile' da meia-noite.

Saíram, ela e Mário, despercebidos pelo portão e caminharam até a rua principal onde centenas de pessoas se acotovelavam na loja de presentes baratos da esquina. Uma padaria exibia frangos e perus assados à porta e Mário desviou seus passos, cheio de uma fome imaginária.

Foram à pracinha que estava deserta àquelas horas, todos atarefados, nem cogitavam levar crianças para balançar ou escorregar animadamente nos brinquedos ali abandonados em véspera de natal. Sim, porque a festa era na véspera, isso Laurinha não entendia e Mário recusava-se a explicar (suspeita-se que ele também não sabia). Mas a verdade é que no dia de Natal, as pessoas curtem uma ressaca braba e sequer lembram onde ou em que data estão.

Sentaram-se num banco recém pintado com capricho e imediatamente passaram a prestar atenção a um senhor que vinha
caminhando pela praça com muita dificuldade.

- Aquele velhinho vai cair em alguns segundos...
- Para, Mário! Tu adivinha futuro agora?
- Não, mas não precisa ser adivinho neste caso...
- Ele tem uma bengala, não tá vendo?
- Não tá adiantando nada.
- Vou ajudá-lo!

- Oi, vô... quer ajuda pra sentar aqui, neste banco?
- Não precisa, menina bonita. Estou bem.
- Bem cambaleante, né vovô?
- Ah... balança mas não cai, estou bem mesmo. Esta bengala é que me atrapalha, minha filha insiste nela, mas não serve pra nada...
- Não é melhor o senhor ficar em casa?
- Tá doida? O povo lá tá num nervoso! Parece que o próprio rei vem pra cear hoje...
- De certa forma, né... É o Cristo...
- Humpfs, ninguém tá pensando nele, menina!
- É lá em casa tá a mesma loucura, também fugi...hihihi

E os três relaxam, recostando a cabeça no banco da praça. Olham pro céu, distraidamente. Sem olhar para a menina, o velhinho pergunta:

- Vocês topam viajar comigo por aí?
- Vocês? - Espantada, Laurinha dá um pulo.
- Viajar? - Mário não acredita no que ouve. - O velho mal pode caminhar e quer viajar?
- O Senhor pode ver meu amigo Mário?
- Não, menina bonita. Mas eu te ouvi conversando quando cheguei, então eu sei que tu tens companhia... hehehe
- Ah... e como o senhor quer viajar se nem consegue caminhar sem cair de maduro?
- Ei, eu não caio não, nunca caí... se eu cair tô ferrado! Mas a gente pode viajar aqui mesmo... por exemplo, eu adoro caminhar e agora mesmo estou partindo pra lua. Olha ela ali, tão pertinho...

A lua estava pálida num céu ainda claro. Todos olharam pra ela.

- Na lua eu posso caminhar facilmente, olha só! Passos largos e saltitantes!
- Ah! Legal! Vou pular todas as crateras num impulso só! - E Laurinha também salta do banco, empolgada!
- Vou pra lua não... - Disse Mário. - O espaço é de uma imensidão muito imensa! Uma chatice!
- O Mário não quer ir pra lua, vô!
- Tem problema não... Vamos caminhar no deserto. Caminhar na areia fortalece as pernas.
- Ah, não! Já fez calor demais hoje, não quero andar miseravelmente debaixo de sol, vovô! - Laurinha sentou-se novamente, cruzando os braços.

Mário resolveu o dilema:

- Vamos caminhar na neve! É fofa, fria e branquinha! Vejam, os pés deslizam...
- É porque tu tá caminhando num rio congelado, bobão! Vai cair! ha ha ha ha - Gargalha Laurinha, fingindo que levanta os pés a cada passada que dá na 'neve' fria da praça.
- Bem, vocês não tem medo do frio e divertem-se pra valer, hein! Ótimos companheiros de viagem!
- Vem, vovô! Mário está deslizando no gelo e eu caminho na neve.. Vem! - A menina segura o braço do novo amigo, ajudando-o a levantar-se.

Laurinha finge caminhar com dificuldade até a esquina da praça, acompanhando assim, os passos inseguros do velhinho.
Ao chegar ao meio-fio, precisaram de equilíbrio pois passou coladinho neles, em alta velocidade, um trenó vermelho, deslizando pelo gelo... Pareceu-lhes que ouviram uma risadinha marôta:

- Ho ho ho ho!

Anorkinda